domingo, 9 de outubro de 2011

Memórias de uma Geração

Dias desses, já sentindo o peso de quarenta janeiros, recuperando-me de uma cirurgia no menisco, caminhava tranquilo - livre dos efeitos da anestesia. Sem dinheiro no bolso, mas sem me preocupar com economia, viajei por caminhos mesclados de realidade e recordação. Naquele amanhecer, os raios de sol refletiam lentamente no cascalho ainda orvalhado, ao longo da Avenida Ana Rita. Cruzavam sobre os telhados das casas, sombreando a rua Conselheiro Barradas. O orvalho deixava lisa a calçada e os primeiros degraus da passarela Albary Guimarães. Ao subi-los, observei a frágil aparência daquele emaranhado de telas sobre os trilhos de manobra. Olhei, do alto, aquela enorme máquina de prefixo  0115. Tinha na parte superior, entre os para - brisas, o farol ainda aceso. A aurora acabara de romper! Nem os motores barulhentos, nem as buzinas me distraíram. Já estava acostumado a ouvir todos os dias os comboios que chegavam e partiam da Estação Paraná carregados de gado, madeira, óleo vegetal e combustível e também os vagões de passageiros diferenciados pelas cores. Os azuis com poltronas brancas, estofadas e macias, eram iluminados e abrigavam os abastados. Nos vermelhos, os assentos eram de madeira e na penumbra (a luz era tímida) levava a segunda classe. Dai a denominação de misto dada pelos usuários daquele transporte. Naquele alvorecer, segurava a mão da minha mãe e admirava a fatiota do meu pai. Nem o vento espalhava seus cabelos de brilhantina Glostora... Naquele dia, o querido Alfredo nos acompanhava em uma viagem até Guaraúna de Valinhos. O trem partiu. Senti o embalo de uma rede. O tranco suave em cada emenda da estrada de ferro soava como o pêndulo de um relógio. Adormeci! Não deu tempo de chegar à próxima estação. Ao virar a página transportei-me para um local onde sentia as folhas caindo do alto de um cinamomo. Não estava cansado, mas aliviado. Agora, podia sentar naquele banco rudimentar. Na sombra, o banco marcava a parada final do coletivo urbano. Dali podia ver a fumaça da chaminé da Cerâmica 12 de Outubro. Ouvi os gritos da torcida do Olinda e o apito do árbitro. Era o sinal para Carlos Costa cobrar escanteio. Ah! Como eu gostaria de ficar ali torcendo pelo Olinda. Ou, talvez, bater um papo com Dona Iolanda, que abrira as porta do Bar São João e estava debruçada na janela vendo o movimento. De vez em quando, ela servia os tragos na soleira. Como eu gostaria de sentar nas banquetas da Casa Tupi e contemplar o sortimento do armazém que atendia à clientela do bairro Chinês. Mas o ônibus já estava de partida e o próximo só dali a duas horas. No trajeto, os católicos faziam o sinal da cruz ao passar em frente à igrejinha construída de madeira, sob as bênçãos do padroeiro São Judas Tadeu. Ali ao lado da recém-inaugurada Praça Pedro Alfredo Ribas, na Rua Ricardo Wagner. Rua que passa em frente à escola Professor José Elias da Rocha. Ah! Dali vêm as lembranças dos recreios e dos lanches comprados no Armazém do Capre. Debaixo da marquise, pode se ver a correria dos operários que encerram o expediente nas Indústrias Wagner. Ao converter para a Rua Ermelino de Leão, deixo de olhar para fora. Observo o aviso: “Não fale com o motorista”. Porém, ninguém fica quieto. O defensor ferrenho do Corinthians está satisfeito com o resultado de ontem. Pedro Machado, homem de caráter, quarentão, sem filhos. Mas bem casado. Ostenta uma grossa aliança na mão esquerda. Segura firme o volante branco do ônibus 61. Começa a jornada às seis horas da manhã, no primeiro calço em frente à Banca de Revistas, debaixo da grande e velha árvore. A sombra protege os engraxates que fizeram a féria do dia e aguardam a matinê do Cine Império. Trocam gibis ao som da música transmitida, entre um anúncio e outro pelo serviço de altofalantes dirigido aos passageiros da Viação Campos Gerais. As pessoas, com respeito reciproco, formam fila indiana ao redor da Praça Barão do Rio Branco. Na Concha Acústica, o maestro Adalto acolhe os alunos da Banda Escola Lyra dos Campos. Nem o som estridente da afinação dos instrumentos, nem o alarido dos alunos do Regente Feijó espantam os pombos que descem da torre da Igreja do Rosário. De jaleco azul, Heloi entregava compras, agora usa quepe de guardião da praça. Homem de estatura pequena, mas coração generoso, antes de render o turno espalha grãos de milho, ao redor da estátua de Tiradentes, para alimentar as aves. Com veste branca, Tiradentes confunde algumas pessoas que o reverenciam como se estivessem diante de Jesus. Mesmo extasiado diante da decoração de natal patrocinada pela loja Hermes Macedo, preciso seguir viagem. Acordo sentindo o cheiro do café preparado no fogão à lenha pela Vovó Maria. Manhã abafada e de nuvens carregadas. Na penumbra da cozinha, sentado à mesa, olho as xicaras de bordas douradas. Dourado igual aos quatro botões da caixa envernizada do Rádio SEMP que está na prateleira suspensa na parede. Das válvulas acesas pelas quatro pilhas Rayovac, passa a luz pelo veludo marrom que esconde o alto falante. Veludo igual ao da voz do locutor que diz: “Hora Brasil você confere comigo nesta manhã carrancuda”. É Aroldo Martan à frente do informativo. Sem mexer na sintonia do aparelho, ouço as badaladas do “Nho Fidêncio”. O berrante toca e Abib Filho anuncia a música gaúcha do “Mate Amargo”. Assim eu vi o som nascer na cidade grande. Vi o som subir, girar, explodir nos céus do Brasil. Vi e ouvi o som beijar o Atlântico na criação e na voz de Nei Costa. Ouvi o gostoso bom dia, mas Bom Dia Mesmo, na perfeita combinação das vozes de Cléo Teixeira e Osni Gomes. Vi Nilson de Oliveira Revolucionar o Rádio. Era um campeão de audiência! Vi a plateia levantar para aplaudir Zé Tinguera, personagem interpretado pelo respeitado profissional de rádio Nilton Campos nos programas de auditório da PR J2. Nessa viagem paradoxal, dei crédito à pregação do Evangelho pelo Presbítero Elias Monteiro. Ao mesmo tempo, prestava atenção nos ensinamentos do tribuno espirita Divaldo Pereira Franco. Para completar meu ecumenismo, olhava a beleza da Catedral de Sant’ Ana. No plano físico mental, me senti de joelhos implorando para que não a demolissem. Ah! Não tive a mesma força dos estudantes que vi dependurados nas árvores da Praça Barão do Rio Branco. Eles resistiam às motosserras que ameaçavam as árvores do local. Não queria mais desembarcar, quando vi a minha frente, um homem alto e forte usando roupas e sapatos brancos. Aquela bela voz me despertou. Eu a reconheci! O homem de branco procurava elementos para fundamentar seu terceiro livro. Ofereceu-me um passaporte para outra viagem, agora através da evolução do rádio AM de Ponta Grossa. Na mesma plataforma que eu havia embarcado com meus pais, em 1973, encontrava o homem de rádio e televisão: Aldo Micaeli. O encontro foi na antiga Estação Paraná, agora Casa da Memória, onde consulto arquivos do acervo do Diário dos Campos e do Jornal da Manhã. Na pesquisa revivi o passado distante, mas presente na memória. Ao voltar dessa viagem encontro com minha companheira Aparecida, meus filhos Alfredo Netto e Juliana. Nesse encontro digo: “O que aprendi com meus pais compartilho com vocês”. Para reviver é preciso viver, observar, construir a história. No Museu Campos Gerais e na Casa da Memória encontrei os caminhos de volta ao passado. Naquelas páginas impressas, o tempo não tinha passado a navalha nos cabelos de Rogério Serman e de Carlos Lazaroto.  Naquele tempo percorrido na pesquisa, o Grande Semeador do Universo não tinha recolhido as vozes radiofônicas ponta-grossenses – Jaime Gilberto, Barros Junior, Frederico Daitchimann, Conti Mendes, as comadres Dayse e Ida e Aroldo Martan. Não poderíamos esquecer do tradicionalista José Darci, o Canhotinho, apresentador do programa na Beira da Cuia.
Autor: Jaime Gilberto

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